Não tem data, nem previsão




Hoje eu me levantei e comecei minha rotina: fui ao banheiro, escovei os dentes, tomei um banho quente e demorado, me troquei e comi apressadamente. Antes de sair de casa, parei em frente ao quarto do meu irmão para dar uma espiadinha nele dormindo. Me aproximei e o beijei, depois dei um beijo em minha mãe e saí. Minha casa fica a dois quarteirões da loja onde eu trabalho, e a loja fica na praça de uma igreja. Era manhã de inverno, uma sexta-feira gelada. A neblina tomava conta das ruas. A única coisa que dava para notar eram os postes que mal iluminavam. Caminhei todo o quarteirão com os braços envolto do corpo, estava gelado demais. Cheguei à loja e me aconcheguei. Fui para trás do balcão atender as pessoas que ali chegavam a todo e qualquer instante. Quando uma cliente se despediu, meus olhos se perderam nos bancos da praça. Algo me chamou atenção. Um casal de idosos estava sentado lá. A mão de ambos em cima da pequena mesa, entrelaçadas. Pela minha visão, eles pareciam estar nos seus 80 anos e aquilo realmente era lindo. 
Uma bengala estava encostada na mesa e percebi que as outras três banquetas ainda estavam desocupadas. A mulher estava bem perto do homem, que parecia-me ser seu marido. O que me chamava atenção, era que não havia banquetas a não ser as três que estavam em meu campo de visão e a quarta em que o senhor estava sentado. Caminhei discretamente para a porta da loja e tentei ver de outro angulo. A senhora estava sentada em sua cadeira de rodas. Ele a olhava freneticamente e sorria a cada palavra que saía da boca dela. Eles conversavam bastante e, a mão livre dela, fazia gestos e mais gestos do que ela queria dizer. 
Então um dos outros senhores de idade, sentado em uma mesa ao lado, jogando baralho, o chamou. Os dois se olharam e ela abaixou a cabeça, fazendo biquinho. Aquela cena me fez ter flash’s do meu passado. Voltei à mim e ele estava acariciando e enrolando as mexas do seu cabelo, colocando-as atrás de sua orelha. Ele deu um beijinho charmoso e carinhoso na testa dela e pegou sua bengala, caminhando dificilmente para a outra mesa. Quando chegou lá, gesticulou algo aos outros senhores e todos olharam para a velhinha sentada. Eles sorriram e deram uma leve batidinha no ombro do amigo. Ele se virou e voltou a caminhar para a mesa onde sua amada esposa estava. Sentou-se cuidadosamente e deu um leve selinho nela. Para muitos, aquilo certamente era diferente, mas para mim, foi uma das cenas mais lindas que eu presenciara até aquele momento de minha vida. Ele entrelaçou sua mão na dela novamente e ficou brincando com os botões de sua blusa. Ela ria como uma adolescente apaixonada, e ele fazia palhaçadas para faze-la sorrir. Pensei comigo se eles realmente tinham a idade que aparentavam, pois não parecia. 
Um dos senhores que estava jogando na mesa ao lado da deles, entrou na lojinha e eu, por curiosidade, perguntei a ele qual era o nome daquele simpático casal e porque eles estavam ali. Ele me disse gentilmente e sorrindo, que ela tinha mais algumas semanas de vida e que era provável que morresse a qualquer momento, e que aquele senhor a prometera nunca soltar da mão dela por mais de dez minutos, e que iria recompensar todas as brigas e os vacilos dele na adolescência, no começo do namoro. Me disse também que os conhecia a muito tempo, desde a época de namorados, e que eles eram complicados. Que viviam se estranhando, claro, depois que se conheceram, porque eles só se comunicavam por cartas. Haviam se conhecido em um daqueles bailes de anos atrás, pelos primos dela. Ele morava em um canto do país e ela em outro e isso nunca impediu que eles sorrissem um pelo outro. Conseguiram ficar juntos depois de mais de dez anos conversando por cartas e estão ai até hoje. 
Eles prometeram um ao outro que estariam presente em tudo que marcassem suas vidas e cumpriram. Mesmo brigados e de mal humor, mesmo estressados. Construíram uma família linda. Tinham três filhos, quatro netos e um bisneto, e todos os dias, naquela mesma hora, desde que souberam da doença dela, eles iam ali e ficavam assim. Ela tinha uma doença terminal rara, que não me recordo o nome. O senhor se despediu de mim e voltou a jogar na pracinha. Continuei olhando o casal no mais belo amor que eles tinham. Fiquei me perguntando se nos dias de hoje isso ainda acontece. É difícil ver algum casal que realmente se ame. Que quando olham um para o outro, a paixão e o amor paira no ar e envolve todos por perto. Porque realmente, o amor deles, mesmo de longe, me contagiava. Fiquei sonhando um amor daqueles para mim, e por que não? Não vejo o meu “amor” a mais de cinco anos e nada me fez perder as esperanças. Com eles foram assim, não? Parei de pensar nessas bobagens e voltei a olhá-los. O amor deles era de dar inveja a qualquer casal de jovens. Era de dar inveja a qualquer pessoa, até mesmo senhores de idade na flor da pele. Percebi que ele prestava atenção e cada palavra que ela dizia e que o sorriso não saía de seu rosto por nada. Era lindo, era um sonho. Sorri e voltei a fazer meu trabalho.
No dia seguinte, acordei no mesmo horário e fiz todas as coisas do dia anterior. Quando cheguei ao trabalho, não os vi lá na mesinha. Me recordei que eles realmente iam sempre lá, mas nunca havia me chamado atenção e eu não entendia porque. Mas hoje estava tudo diferente. Os senhores da mesa de jogos estavam lá, mas nenhum deles jogava e nenhum deles sorria. Quando dei por conta, o senhor chegou na mesa e se sentou, mas não vi sua mulher. 

Ele colocou uma rosa azul em cima da mesa e, de longe, vi que algo brilhava em seu rosto. Era uma lágrima. Não consegui me conter e atravessei a rua. Sentei-me do seu lado e peguei em sua mão enrugada e gélida. Do lado da flor azul, haviam duas fotos, uma que, creio eu, era deles dois quando mais jovens, e outra de alguns meses atrás. Ele olhou para a foto e soltou uma risada fraca e seca. 
"- Nos vimos aqui, pela primeira vez. Era nessa praça que havia o baile e eu me apaixonei quando a vi dançando e rodando aquele vestido cor-de-rosa. Ela era linda. - ele apontou para a foto em que ela usava o vestido cor-de-rosa e sorria para a câmera, ele estava de pé ao seu lado, a olhando, admirado. - Sabe, eu prometi a ela que, depois daquele dia, nunca iria deixar de perder o contato e não deixei. Fui vê-la algumas vezes, mesmo sendo muito difícil. Eu nem devia estar aqui a 70 anos atrás, mas eu estava. Tínhamos 17 anos. Ela era a garota mais linda que vi em toda minha vida. Eu a fiz tanto mal, mas a recompensei de tudo. Ontem ela me pediu para virmos aqui. Eu acho que ela sabia. Ela falava do nosso passado, brigava comigo pelas vezes que a fiz de boba e ria por acreditar nas coisas que eu dizia, e depois dizia que me amava por tudo que eu havia feito, porque eu tinha a feito crescer. Eu apenas conseguia sorrir das coisas que ela dizia, sabe? - ele me olhou e sorriu novamente. Consenti. - Faz 9 anos que a doença dela foi diagnosticada. E eu me pergunto por que não eu? Porque sabe, eu não queria perde-la, mas eu estou feliz. Consegui cumprir todas as promessas que fiz a ela durante todos esses 70 anos juntos. Ela lutou tanto por mim e eu nunca percebi isso. Me arrependo por tê-la soltado várias vezes, mas fico feliz por ter visto meus erros e ter puxado ela de volta para mim. Eu não tenho dúvidas que ela é, foi e sempre será a mulher perfeita da minha vida. Que ela é, foi e sempre será a metade da minha laranja, a minha metade, minha alma gêmea. Agora ela está lá, - ele ergueu a cabeça, olhou para o céu e sorriu, deixando rolar mais lágrimas em seu rosto. - ou não está. Não acredito nisso, mas ela acreditava. Tudo bem. Ela estando onde estiver, estará com meu coração. Porque, esse velho aqui, tanto eu quanto meu coração, vive e respira por ela. E mesmo que ela tenha ido, eu sei que a fiz feliz, eu sei que eu fui o seu amor verdadeiro e sei que… sei que nos veremos em breve.” 
Ele sorriu novamente para mim e acenou para alguns dos senhores que estavam na mesa. Pegou sua bengala e se levantou, caminhando. Aquilo realmente era magnífico. Ouvi alguém fazer “psiu” baixinho e olhei para onde o som vinha. Era ele. Ele sorriu e disse por fim: 
“- Se você o ama, não desista. Quase desisti dela e quase perdi a coisa mais perfeita da minha vida. Ela! Então se ama alguém, vá e lute, persista. A gente consegue sim, quando queremos. E se você quer, mesmo que não valha a pena, pode valer a galinha. Entendeu? Nunca pare de sonhar e nunca pare de tentar realizar seus sonhos, porque sem a nossa vontade e sem o que amamos, não somos nada. Te digo, hoje sou algo por causa da mulher que você viu ontem aqui comigo, porque sem ela, eu não seria esse velho ranzinza e chato. Sem ela eu seria legal e livre, mas a melhor coisa do mundo foi me prender aquela velha louca. Ela me deu o presente mais divino de Deus e me deu o maior e mais perfeito amor que alguém pode ganhar na vida.” 
Ele deu uma piscadela e se virou, voltando a caminhar para sua casa, creio eu. Sorri e olhei para a rosa azul deixada na mesa. A peguei e coloquei na bolsa, em seguida voltei a trabalhar. Aquilo não era só um grande amor, era sim, uma lição de vida. (Texto escrito em 2012). Gabriela Cadamuro

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