Do outro lado do muro



Todos os dias ela acordava as sete da manhã vestindo apenas uma calcinha e a camiseta desgastada pelo tempo e pelos homens que ela conhecia. Sem pensar muito escovava os dentes e preparava o café ao mesmo tempo. Forte, amargo. Ela dizia que combinava com a vida.

Enchia a xícara do Bob Esponja de café e colocava o cigarro na boca avermelhada de batom. Ia para a varanda e se sentava no corrimão da sacada. Eu a olhava de longe, tentando entender o que aquela mulher fazia sozinha toda a manhã dos dias de semana, e porque todos os sábados e domingos de manhã, ela acordava as nove, abria a porta, fechava a porta com força, fazendo um barulhão, e depois chorava enquanto tomava chá. Nesses dias ela chegava a fumar três cigarros em vinte minutos.

Nunca a olhei com desejo carnal, mesmo ela usando calcinha todo o dia de manhã e se exibindo de frente à meu apartamento. Nunca pensei em ter o corpo daquela mulher. O que eu pensava, todos pensavam: por quê ela ainda está sozinha?

Certo dia precisei de café. A vizinha foi a primeira pessoa que veio a mente e, talvez fosse uma boa maneira de desvendá-la. Bati três vezes à sua porta. Ela abriu e encostou na parede. Dessa vez o bumbum estava coberto por um short preto, mas a barriga estava a mostra, tendo os seios cobertos por um top branco.

- Que tu quer? - seus olhos estavam transbordando, e hoje não era sábado, nem domingo, era quarta ainda.

- Você tem um pouco de café para me emprestar? O meu acabou e...

- Tanto faz, vou pega. Se quiser, entra. 

O lugar era organizado, cheirava hortelã e pêssego. Era decorado de uma maneira delicada, coisa de menina. Só uma coisa me chocou: todos os porta-retratos estavam abaixados. 

- Aqui. Precisa devolver não, não faz falta.

- Mas você bebe todo dia. - falei demais.

- Fica me vigiando, moço? 

- N-não, só que... eu... vi.

Ela sorriu de canto e ficou parada em minha frente me encarando. Seu sorriso demonstrava malícia. Seus olhos demonstravam medo. Seu rosto não demonstrava mais nada. Então ela me beijou. Eu não fiz nada, não a toquei, fiquei um metro distante dela, e ela me beijou. Acabei retribuindo.

- Aprenda moço, nunca vigie uma mulher e diga que não o faz. Ela sabe que você faz. Por falar nisso, seu nome é?

Abri a boca para falar mas ela a fechou. Pisquei três vezes sem entender. Eu nunca havia ficado vulnerável a uma mulher antes. 

- Esquece nomes. Você beija melhor que fala.

O que aconteceu depois? Bom, depois daquela dia, ela chorou só quando brigávamos. O que era sempre. Acho que não mudei muito sua vida, mas não a fazia chorar em todos os fins de semana, só em alguns. Ela mais sorria que chorava, e eu também, sorria e chorava.

CRANELA

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