A insanidade de Arlequina no mundo apocalíptico
Ela andava tranquila pela avenida paralela ao banco, enquanto a
sirene disparava ensurdecedoramente após, juntos, terem assaltado
por mais uma noite consecutiva. O assovio do Coringa era calmo e
medonho, sua risada ecoava pelos becos em que passavam.
Ao se aproximarem do penúltimo beco, Arlequina ouviu grunhidos
asquerosos e sons de algo sendo devorado com voracidade. Suas
sobrancelhas se eriçaram e seus pelos se arrepiaram com o medo que
percorria sua espinha. Apesar dos esforços para não se meter em
nenhuma outra encrenca em apenas uma noite, a garota loura não
conseguiu resistir aos instintos curiosos e insanos.
Seu próximo passo, que deveria ser para frente, mudou de percurso e
fez uma virada brusca para a direita, entrando diretamente no beco
escuro e fedorento. Cheirava a enxofre e sangue. A escuridão não
permitia que seus olhos claros se adaptassem, então ela se lembrou
da lanterna que carregava no tornozelo. Com descrição, retirou o
objeto da perna e o acendeu, dando de cara com um homem debruçado de
quatro sobre alguma coisa aparentemente grande. A garota abaixo do
predador poderia ser loura ou morena, caso não estivesse
irreconhecível. Pedaços de carne e gotas de um vermelho vivo de
sangue pingavam do seu ventre enquanto o homem acima dela a devorava
deliciosamente. A pupila de Arlequina dilatou no exato momento em que
tudo fez sentido – depois das declarações de que algum vírus
havia atingido perigosamente o país – e a lanterna em sua mão
caiu.
O barulho fez o monstrengo olhar para trás; mas a garota, ligeira
como é, não estava mais lá.
Assustada com o que acabara de ver, Arlequina correu para o carro
onde estava o “amado”. Abriu a porta, sentou no banco e a fechou,
fazendo um baque um pouco alto demais. O homem a olhou de canto e
tossiu dando um ar de que estava querendo saber o que tinha
acontecido. Não adiantava ele dizer que ela estava pálida, porque
era sua cor natural de pele, mas estava roxa, isso sim era estranho.
Ela respirou fundo umas três vezes até tomar coragem – o que era
estranho partindo de uma pessoa como Arlquina, que, convenhamos, não
era muito sã – e explicou para o moço de cabelo verde sentado ao
seu lado toda a sua vida escondida por trás da loucura que ela
vivia. O amor por livros, o mundo zumbi que ela descobriu, o vírus
que atingiu o país que, até então era desconhecido, o que tinha
ocorrido diante dos seus olhos há poucos minutos. Seu depoimento era
rico em detalhes e muito fora da compreensão de qualquer pessoa, até
do louco mais insano do mundo, conhecido como Coringa.
O obvio aconteceu, Coringa não acreditou em uma palavra que a
garota dizia e riu. Sua risada reconhecível em todos os cantos ecoou
no carro e a deixou pasma, triste e desacreditada no amor que tinha
pelo homem. Por ser insana, Coringa achou que era apenas mais uma
piada da menina loura e não deu a menor atenção. Com isso, ela
pediu para descer do carro e ele não hesitou; fez-se uma freada
brusca e outra batida na porta.
Azul e rosa eram os tons dos olhos da garota loura enquanto
caminhava pelas ruas de Gothan desiludida e chorosa, pensando no que
faria agora, sozinha, no momento mais perigoso de sua vida. Tudo
aquilo que via nos livros e achava incrível, mas impossível, estava
acontecendo e, o seu amor maluco acabara de deixá-la sozinha para
resolver este problema. Ela para no meio da avenida e franze a testa.
“Pensa, pensa, pensa”, sussurra para si mesma. Suas mãos se
fecham forte fazendo com que as unhas cravem na palma e ela,
finalmente, se decide.
Não importa quão perigoso possa parecer, mas a provação da
capacidade que ela tem é mais importante que o perigo iminente. Há
um taco de basebol, há a insanidade de Arlequina, há a raiva e há
a vontade enlouquecedora de provar ao Coringa que ela pode. Que era
tudo verdade.
Na procura por zumbis, Arlequina caminhou por entre os parques da
cidade e becos até se deparar com duas dezenas de zumbis em um
condomínio abandonado. Seus olhos ardiam em favor das lágrimas e do
ódio que sentia enquanto caminhava ao encontro dos mortos vivos. O
barulho de algo oco se quebrando ao meio enquanto a garota lançava o
taco de basebol na cabeça dos mortos, era nojento e asqueroso. Bile,
sangue e pedaços de cérebro de cor mais semelhante ao preto se
espalhava pelo chão do condomínio.
Quase todos os zumbis foram aniquilados, exceto por um que ficou
distraído por conta de um gato e a garota teve que ir atrás depois.
O homem, aparentemente negro, vestia um macacão e usava botas e
luvas, uma máscara presa pendia da sua cintura. A pequena garota
loura e psicótica quase não acreditou quando o zumbi se virou para
ela depois do leve assobio. Seus olhos vermelhos se arregalaram e seu
coração palpitou três vezes mais rápido que o normal, as mãos
tremiam e o taco foi ao chão.
O Pistoleiro tinha o rosto mastigado e a roupa rasgada e surrada,
seus olhos lembravam leite e seu cheiro era podre. Desacreditada no
que via a sua frente, Arlequina não conseguia se segurar, vindo à
desabar de joelhos. Seus gritos de porquê ecoavam pelas ruas do
condomínio e suas lágrimas inundavam o rosto da garota, agora não
tão insana. Seu antigo “affair” estava morto, tinha se
transformado em um monstro e não havia cura para isso. O instinto de
sobrevivência de Arlequina demorou para aparecer enquanto o antigo
Pistoleiro se aproximava com dentes podres e uma fome de carne humana
fresca.
Ela sabia o que deveria fazer. Mas demorou um segundo para tomar a
decisão. Segundo este que foi crucial para o desenrolar dos fatos
que viriam a acontecer nos próximos três minutos subsequentes. Os
dentes do homem cravaram no braço da garota enquanto ela soltava um
grito de agonia e dor. Com a outra mão livre, ela alcançou o taco e
desferiu um golpe certeiro no centro da testa do Pistoleiro, fazendo
com que seu crânio afundasse e bile com sangue jorrasse em seu
rosto. Ele caiu e Arlequina também.
Mordida e com a sensação de que havia falhado, Arlequina se
levantou sentindo os ossos se contorcerem e a cabeça queimar. Seus
passos eram pesados, mas ela precisava sair dali e chegar até o
Coringa. Lutando contra si mesma e contra o monstro que crescia
dentro dela, a garota conseguiu localizar o maluco e, a um passo de
ficar em sua vista, ela desmaiou. O baque surdo que fez quando seu
corpo caiu no asfalto, chamou a atenção do Coringa e ele se virou.
Ao ver a garota estendida no chão, ele se aproximou, achando ser
mais uma piada muito bem feita por ela.
Arlequina tinha os olhos leitosos e o rosto pálido misturado com o
roxo de veia saltadas. O sangue e o vermelho vivo tomavam conta da
sua boca e a mordida se tornava apenas mais uma cicatriz das diversas
que ela já tinha. O até então psicopata intitulado Coringa não
acreditava no que via, mas sabia o que deveria fazer, lembrando do
que a garota havia lhe dito antes de sumir e ele não havia
acreditado. Com a pistola em mãos, ele atirou sem dor, sem paixão,
sem sentimento. Por mais que a desejasse, Coringa nunca foi de sentir
compaixão por ninguém, isso não iria mudar com a Arlequina.
Apesar do coração frio e impiedoso, ele gostava de sentir-se
superior ao que estava acontecendo no mundo agora: o vírus zumbi.
Assim decidiu ir atrás destes queridos mortos-vivos e aniquilá-los
um por um.
Se isso era por conta de Arlequina? Nunca – pensou consigo – Mas
pensando bem, a morte é só uma piada, não é mesmo?
HAHAHAHAHAAHHAHAHA!
Sua risada parecia ter piorado. Arrepiava.
Cranela
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